terça-feira, 8 de março de 2022

08/03 - NÃO HÁ TEMPO PARA PISTACHOS

É fácil cair, até porque há sempre mais quem nos queira deitar a baixo do que quem nos ajude a levantar. Pior ainda é quando alguém está a bater no fundo julgando que está na coroa da lua.

O despertador emitiu vários sinais sonoros até que a mão indolente de Júlia o desligou com o polegar enquanto o indicador ligava o rádio. Ficou assim com os olhos semicerrados a ouvir um locutor que falava de pandemias e guerras com aquela aquele voz empolgada e feliz com que eles costumam dar más notícias. – coisas sem importância – pensou Júlia enquanto saía da cama espreguiçando-se. Olhou-se ao espelho. Apesar de ter completado recentemente os vinte e oito anos ainda mantinha um ar juvenil que lhe permitia mentir sobre a sua idade. Era linda, mas uma máscara de cansaço toldava aquela rara beleza. – Ossos do oficio – Pensou. A profissão que escolheu exigia muito dela, tanto a nível físico como psicológico.
Dirigiu-se à janela e levantou a persiana. Estava um dia radiante de Verão. A praia, ali a dois passos, era um mar de gente. Um miúdo fazia birra por não lhe comprarem um gelado. No passeio desenhava-se a figura caricata de uma velha que se ajeitava-se numa cadeira exibindo um cartaz onde se podia ler: “Alugam-se quartos”. Júlia encostou a testa à janela. A frescura do vidro era agradável. Famílias inteiras dirigiam-se à praia carregando uma parafernália de objetos: chapéus, toalhas, cadeiras, brinquedos, etc. Mesmo por baixo da sua janela, uma senhora gorda vendia amendoins, tremoços, pistachos e outros aperitivos. Adorava pistachos. - Daqui a pouco vou lá comprar uma sacada. Talvez compre também uma cerveja no quiosque. - Pensou ela sorrindo.
No areal, por entre toda aquela agitação, vislumbrou uma menina que brincava sozinha misturando areia com os seus sonhos de criança. Por momentos recordou a sua infância. Foi uma criança feliz rodeada de carinhos. Depois começou a crescer e uma sucessão de nefastos ventos levaram-lhe os sonhos e a vontade de viver. Primeiro a morte prematura do pai, depois o padrasto que lhe batia. Mais tarde a mãe partiu também para a eternidade. Ficou sem ninguém que a defendesse daquele ser imundo que era o companheiro de sua mãe. Só tinha uma solução: meteu algumas peças de roupa num saco, guardou o dinheiro que encontrou e pôs-se a caminho de dedo esticado pedindo boleia. O seu destino era ir para longe. É sempre esse o destino de quem foge. Assim ficou só no mundo em plena adolescência. Chegou a passar fome e a dormir na rua. A tudo resistiu até que uma amiga lhe deitou a mão. Agora estava bem. O apartamento virado para o mar e o BMW na garagem davam-lhe a felicidade com que muitos sonham. O toque do telemóvel interrompeu-lhe estes pensamentos que já lhe desenhavam uma lágrima fortuita no rosto. Numero privado como de costume. Atendeu. Uma voz de homem rouca e arrastada fez-lhe diversas perguntas. Ela foi respondendo cautelosamente e terminou a chamada indicando a sua morada. Já não tenho tempo para comprar pistachos.
Tomou um banho, secou-se, vestiu um conjunto de lingerie provocante e sentou-se esperando calmamente.
O primeiro cliente do dia estava para chegar.

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