segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Minicrónicas – Série II – 06 – Sofá e manta

Lá se foi o tempo de uma mesa de esplanada, uma cerveja gelada e um livro. Em poucas semanas chegámos ao tempo de um sofá, uma manta e um livro. Os prazeres de verão dão lugar aos prazeres de inverno. Há quem prefira uns e há quem prefira outros. Por mim, prefiro o calor e os dias grandes, mas também aprecio a chuva que bate nas vidraças. Avizinha-se um dia perfeito. Estou de folga. A meteorologia anuncia uma tarde de chuva. O livro que encomendei deve chegar hoje. O sofá e a manta estão a postos. A chuva começa tintinar e o carteiro apitou. Trazia contas para pagar e publicidade. O livro não veio e não tenho nada para ler. Lá se foi a tarde perfeita. Recordei as lições proverbiais da minha avó: Nunca contes com o ovo no cu da galinha.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Mini-crónicas – Série II – 05 – Tejo azul

Campo de Santa Clara, dia de feira da Ladra. Vou vagueando por entre as tendas, apreciando as antiguidades. Entro no jardim Botto Machado de onde sei que poderei tirar uma boa foto. Logo à entrada, sentada num muro, está uma jovem a desenhar. Os seus trabalhos são repletos de cor e de imaginação. Ela levanta a cabeça e sorri timidamente. Nos seus olhos corre o Tejo azul, sereno e sonhador. Perguntei preços.

- Isto é apenas um hobby, mas vendo por três euros… Será muito?

Escolhi um desenho e dei-lhe cinco Euros, declarando que não queria troco.

- Obrigado, mas não quero o seu prejuízo. Leve mais um.

Aceitei e despedi-me desejando o maior sucesso. Ia já perto da igreja de São Vicente de Fora quando me lembrei que podia ter pedido algum contacto à jovem artista. Não pedi, mas no meu pensamento corre o Tejo azul, sereno e sonhador.

Mini-crónicas – Série II – 04 – Serei espanhol?

Antigamente havia pessoas sábias, ou porque tinham elevada formação académica, ou porque liam muitos livros ou ainda porque viajavam muito. Claro que isso não estava ao alcance de todos. Era mesmo uma minoria que se podia dar ao luxo de ler, estudar e viajar. Hoje temos uma universidade grátis para todos e chama-se Facebook. Daqui saem dois tipos de doutores. Temos os que são especialistas em tudo, mas ao vivo não dizem pão. Fizeram mestrado de copia-e-cola da Wikipédia e outros sites. Depois temos os que não dizem pão no Face, mas que vão decorando frases feitas para dizerem com ares de quem sabe. O pior é que falta-lhes escola, falta-lhes chá. Localizam a Venezuela em África e dizem coisas do tipo: Três terços dos portugueses vivem na miséria. Estou tão longe de ser rico como estou da miséria, logo assaltou-me uma dúvida aterradora: Serei espanhol??

Minicrónicas – Série II – 03 – O Menino das Lágrimas

O quadro vinha embalado em papel de embrulho. A minha mãe cortou o cordão e atirou-me com ele. Ela sabia que eu gostava de brincar com cordões. Eram úteis para os meus navios piratas que cruzavam os oceanos do chão da sala. Também serviam para enforcar peluches. A minha mãe e a minha tia testaram as várias hipóteses para pendurarem o quadro até se decidirem pela parede ao lado do guarda-louça. A minha avó estava-se nas tintas para a pintura. Um prego, um martelo e pronto, quadro pendurado. Nele via-se um menino, talvez da minha idade, com ar triste e duas grossas lágrimas sulcavam-lhe o rosto. Não lhe achei graça nenhuma e fiquei piurso quando disseram que era parecido comigo. Chorar era para os putos. Eu já não chorava, já tinha sete anos, prestes a fazer oito.

Minicrónicas – Série II – 02 – Primeiras Chuvas

O meu avô escancarou a janela da cozinha e exclamou: Olha o que chove! Apresentou-nos a chuva como se fosse obra dele. Não me admirava nada. Quem sabia histórias como a Torre da Babilónia, bem podia criar a chuva. É ouro a cair do céu, dizia a minha avó com aquele costume de chamar outra coisa às coisas. O ouro tem outra cor e faz outro barulho. Pensava eu olhando a lareira onde crepitava uma bela fogueira. Temos lenha na loja, as batatas estão no trabinaco e o vinho está nos pipos. Pode chover à vontade. Pois é, mas lá tinha eu que adiar os planos de uma cabana no bosque. O meu avô foi buscar um saco de castanhas e um assador de barro. Vou assar castanhas, anunciou ele como se não fosse óbvio. Boa ideia. Sim, o meu avô podia não ser o criador da chuva, mas era ele que tinha as melhores ideias.