segunda-feira, 8 de agosto de 2022

08/08 - O SINO

O SINO

Ainda não eram oito da manhã quando Aníbal Sacristão se dirigiu à igreja. Eram horas do primeiro toque no sino a anunciar a missa que seria por volta das nove. Uma missa especial por ser a primeira daquele ano de 1947. Subiu a escada estonteante por ser em espiral. Chegou ao cimo cansado e tonto. Já lhe começavam a faltar as pernas para aquilo. Em breve, o Senhor Prior teria que arranjar outro. O que mais havia era malta nova com vontade de ser sacristão. Puxou a corda do sino e ouviu um som estranho. Algo que não tinha nada de parecido com o som vibrante que era invejado pelas aldeias vizinhas.

- Parece uma cana rachada! Que diabo se passa com o sino!?

Aproximou-se e viu de onde vinha o defeito. O sino estava rachado de alto a baixo. Depressa adivinhou a origem do estrago.

- Valdevinos. Partiram o sino a festejar o ano novo. Grandes pedaços de asno...

Tudo tinha começado na véspera. Jaime, Júlio e João tinham o apelido de “três jotas”. Isto derivava das iniciais dos seus nomes e do facto de andarem sempre juntos. Eram da mesma idade. Foram às sortes no mesmo dia e só mesmo a tropa os separou durante longos e penosos meses. Anos mais tarde, a cultura pop conheceria outros três jotas. Janis Joplin, Jim Morrison e Jimi Hendrix tinham em comum a primeira letra do nome, a genialidade e o facto de uma vida desregrada os ter levado a todos aos vinte e sete anos, mas isso é outra história.

Naquele dia, trinta e um de Dezembro, os três jotas, resolveram fazer uma patuscada na adega do João. Aí aguardaram pela meia-noite bebendo uns copos e comendo do que havia. Brindaram à chegada do novo ano e encaminharam-se para a Igreja Matriz. Havia tradições a cumprir. Subiram à torre. João pegou no badalo e Júlio serviu-se do martelo que bate as horas. Jaime ficou desarmado. O sino começou a vibrar furiosamente espantando o ano velho e dando as boas vindas a 1947. Jaime queria participar na festa, mas quem despegava aqueles dois? Foi então que se lembrou da marreta que tinha na loja. A casa era dois passos dali.

- Eu já venho. Esperem por mim.

Não esperaram muito. Ele chegou armado de pesada marreta e entrou na festa com todo o entusiasmo. Um badalo, um martelo e uma marreta eram demais para o velho sino. Um som agudo anunciou o fim da resistência. O povo, adormecido mesmo com o som estridente do seu sino, não deu conta daquela última badalada. Os três jotas deram e ficaram apavorados. O caso não era para menos. Tinham dado cabo de algo que era do povo. Era grande a importância do sino na vida da aldeia. Era ele que dava as horas. Era ele que anunciava a missa e todas as cerimónias religiosas. Vibrava com alegria em dias festivos, mas também batia pausadamente quando anunciava um falecimento. Dizia o povo que até tinha o misterioso dom de adivinhar a morte quando o som era remansado. Soava a alarme quando era tocado a rebate. Normalmente anunciava o fogo em alguma mata ou quando este consumia alguma casa deixando rastos de devastação e miséria. O sino era como o coração do povo e agora estava partido. Os três rapazes tinham razão para estar assustados.

- É pá. Partimos o sino! E agora.

- Agora cavamos daqui para fora e ninguém se descose.

Desceram a escada e desapareceram na bruma da noite, cada um para sua casa.

Agora era o Aníbal Sacristão a contemplar o vândalo ato.

- Valdevinos. Pedaços de asno. Quem seriam os galegos que fizeram este lindo serviço.

Foi ao padre que coube a missão de anunciar na sagrada Eucaristia o triste acontecimento. Apelou mesmo a todas as forças do céu e do inferno para que pesado castigo caísse sobre o bando de facínoras destruidores do bem do povo. Júlio, Jaime e João ouviam tudo em silêncio. No silêncio do seu segredo. O povo estava indignado e à saída da missa não se falava de outra coisa. Foi aí que o Júlio teve uma brilhante ideia que o salvaria da ira do povo e de todas as entidades do além convocadas pelo padre.

- A malta junta-se e damos uma volta ao povo. Com um peditório arranjamos dinheiro para um sino novo e ainda melhor que este.

Jaime e João juntaram-se a ele.

- Começamos ainda hoje a organizar isso.

O padre, ouviu a conversa e abençoou aqueles três rapazes.

- Deus vos ajude a fazer o bem. É com rapazes assim que a nossa paróquia pode contar.

Dona Filomena, beata dos sete costados ou mais, chorava comovida.

- Até eu, mesmo pobre, Ainda tenho dez tostões para ajuda.

Os três rapazes passaram a percorrer a aldeia a bater de porta em porta e nenhuma se fechou.

- Uma ajudinha para o sino.

- Sim senhor. Andam vocês a compor o que os bandidos estragaram. Eles é que haviam de pagar.

- Vá-se lá agora saber quem foi.

- Tomem lá. É pouco, mas é de boa vontade.

- Deus o ajude.

Ao fim do dia tinham dinheiro que chegava para o sino e ainda sobrou para uma travessa de carapau frito com molho de escabeche regada com vinho tinto na tasca do Vicente. O povo nunca esqueceu o ato daqueles bons rapazes que ocuparam o dia feriado a trabalhar para o bem da aldeia. Até os heróis têm os seus segredos.

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