quarta-feira, 13 de julho de 2022

08/07 - A RAZÃO DE EU GOSTAR DE MULHERES VESTIDAS DE BRANCO

Já há algum tempo que me andavam a ameaçar. Era só um ligeiro descarrilamento comportamental para vir logo o susto: deixa-te ir para a escola que vais ver. Depois vinha logo a história do terrível professor que batia nas mãos dos alunos com uma régua de madeira. Podia lá ser? Um par de estalos bem assentes com esmero e dedicação já me tinha acontecido, mas levar com uma tábua nas mãos não era coisa que os meus seis anos imaginassem. Finalmente chegou o dia. Tiraram-me da cama mais cedo. Um banho, orelhas bem lavadas, um pequeno almoço, e uma bata azul com as minhas iniciais bordadas no bolso. Deram-me uma pasta com uma lousa, um giz, um caderno com a imagem de um jovem da mocidade portuguesa e um lápis. Lá vou a caminho da escola assumindo ares de pessoa importante quando passava por alguém. Afinal já não era nenhuma criança. Até já andava na escola. A cena das reguadas é que assustava, mas se os outros as levavam e sobreviviam, eu não seria diferente. Entrei na sala de aula. Lá estavam os outros miúdos da aldeia também com cara de caso. As miúdas ficavam na outra sala e tinham outro espaço para brincar separado por arame farpado. O professor entrou de rompante. Levantaram-se todos e eu fiz o mesmo. Ouviu-se um coro que não tive tempo de acompanhar.
- Bom dia senhor professor.
O visado respondeu.
- Bom dia meninos.
Os meninos da segunda, terceira e quarta classe rezaram o pai-nosso e cantaram o Hino Nacional. Eu e os outros da primeira classe ficámos a conhecer aquele que seria um ritual diário. Agora, a bem com Deus e com a Pátria, era tempo de começar a aula. O professor, careca de óculos grossos, não era assim tão ameaçador. Tinha mais medo daqueles senhores dos retratos que guardavam o quadro negro. Imaginava que fossem eles que a qualquer momento entrassem na sala de régua em punho. Aquele velho de ar sinistro e o outro vestido de militar e bigode farfalhudo não me inspiravam confiança. Tranquilizava-me mais a imagem de Cristo ao meio dos fulanos, mas de mãos e pés pregados também não seria grande defesa. Só mais tarde vim a saber que se tratava do Dr. António de Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros e do Marechal António Óscar de Fragoso Carmona, Presidente da Republica. Também vim a saber que, em 1972, já deviam ter sido substituídos pelo Dr. Marcelo José das Neves Alves Caetano e pelo Almirante Américo Deus Rodrigues Thomaz respetivamente, mas a podridão do regime já não dava para mais. Também só em abril de 1974 fiquei a saber que tinha boas razões para temer esses filhos da puta todos, apesar das mães não terem culpa.
Afinal o professor, careca de óculos, era mais ameaçador do que parecia. Abriu a gaveta e tirou uma tábua em mogno. Mostrou-a a nós que eramos novos alunos.
- Quem não se porta bem e quem não estuda leva com isto nas mãozinhas.
Afinal a régua existia mesmo! Não era só ameaça. Felizmente era só para quem se portava mal e para quem não estudava. Eu não tinha nada a recear. O professor escreveu as letras a, e, i, o, u no quadro negro e mandou copiar. Aquilo saiu-me tão mal, tão gatafunho que achei melhor arrancar a folha ao caderno e começar de novo. Amarfanhei o papel, levantei-me e fui pôr no caixote do lixo. Voltava para trás quando o professor me chamou.
- Menino, venha cá.
- Sim senhor professor.
- Como se chama?
- Paulo.
Horror dos horrores. O professor abriu a gaveta e tirou a pesada régua.
- Estenda a mão.
Assim fiz. Fechei os olhos, mas vi mentalmente a ferramenta de tortura elevar-se e cair com velocidade na minha pequena mão. Uma dor intensa. Mais intensa ficou com os risos de escárnio dos meus colegas.
- É para aprender que nunca mais se pode levantar sem me pedir licença.
Afinal havia muita coisa a saber sobre o conceito de “portar-se bem”. Chegou a hora do recreio e a dor da mão e da alma ficou esquecida. Mesmo em dez minutos ainda dava para encher um saco de papeis e jogar uma futebolada. Eu não joguei. Ninguém me escolheu para fazer parte da equipa. Fui ver o que se passava para além do arame farpado. As meninas, também em intervalo, saltavam á corda e jogavam ao lenço. De batas brancas pareciam pombinhas a saltitar. Deitei-me e rastejei por baixo do arame farpado. Ainda fiquei preso, mas passei. Queria brincar com as pombinhas brancas, mas não tive sorte. Logo soou o alarme. Um colega, talvez invejoso, gritou bem alto.
- O Vítor Paulo anda no recreio das meninas!
No regresso à sala de aula tive direito a um corretivo moralista e a uma segunda dose de régua. Doloroso saldo para o primeiro dia de aulas, mas acredito que foi nesse dia que fiquei a gostar de mulheres vestidas de branco

Sem comentários:

Enviar um comentário