quarta-feira, 13 de julho de 2022

08/05 - RESIDENCIAL CRONOS

A pensão Cronos não figurava nos sites das agências on-line onde se podia reservar um quarto. Não figurava em anúncios de jornal, em folhetos turísticos nem mesmo nas velhas páginas amarelas. Ficava situada numa ruela de Alfama e quase não se dava por ela se não fosse uma placa metálica ferrugenta. Bati à porta e não tardou que ela rangesse antes de se abrir e deixar ver uma bela rapariga de negros cabelos aos caracóis.
- Bom dia.
- Bom dia senhor.
- Tem algum quarto vago?
- Claro que sim. Entre.
Levou-me por um corredor comprido. Do lado de fora, ninguém imaginaria o imenso espaço que há interior do edifício.
- Quem lhe recomendou a nossa pensão?
- Um fulano que estava lá fora a desenhar na rua.
- Sei quem é. É um tal Vítor que vive lá para a Beira Alta, mas de vez em quando vem para aí pintar a capital. Aqui está o seu quarto.
Era um quarto espaçoso, mas acolhedor. Curiosamente estava decorado com relógios antigos. Eram mais de vinte, na cómoda, nas mesinhas de cabeceira, por cima do roupeiro e nas paredes. Felizmente estavam parados, senão seria uma cacofonia de tiquetaques que não deixaria dormir ninguém. Estava cansado e resolvi dormir um sono. Deitei-me. A cama queixou-se um bocadinho, mas logo estabilizou. Apaguei a luz e fechei os olhos. O sono começava a tomar conta dos meus sentidos quando algo os despertou. Todos aqueles relógios, mais de vinte, começaram a trabalhar ruidosamente. Chegou a meia-noite e as doze badaladas soaram em todos eles. Antes da décima segunda pancada senti-me como que a flutuar e apenas via umas luzes coloridas a rodopiar à minha volta. Tentei gritar, mas não consegui. De repente acordei daquilo que julgava ser um pesadelo. Estava deitado no chão, mas no meio da rua. Levantei-me e ouvi uma senhora dizer para outra: Um bêbado a dormir na rua! Ao que isto chegou. Pelas roupas e pelos penteados, pareciam ter saído as duas de um filme daqueles em que entrava o Vasco Santana e a Beatriz Costa. Quando olho à volta fico aterrorizado e fascinado ao mesmo tempo. Os automóveis eram dos anos trinta e toda a gente se vestia à moda dessa época. Era certo que estava em Lisboa. Ali estava o rio Tejo e o Cais da Rocha, mas olhei para a ponte e não havia ponte. Nem sequer o Cristo Rei abria os braços do outro lado do rio. Teria viajado no tempo? Como nos filmes apareceu logo um jovem ardina a apregoar o jornal “O Diário de Lisboa”.
- Ó miúdo. Mostra-me o jornal.
- Não quer comprar?
- Quanto custa?
- São três tostões.
Meti a mão ao bolso e encontrei um Euro.
- Toma lá esta moeda…
O miúdo olhou para ela e para mim com ar desconfiado.
- É estrangeira?
- É… mais ou menos, mas guarda bem porque vale tanto como mais de seiscentos jornais.
- Fico com ela. Tome lá o jornal.
O miúdo seguiu o seu caminho e eu olhei para o cabeçalho do jornal confirmando o que estava à vista. O jornal tinha a data de 19 de Julho de 1936 e no seu titulo principal podia ler-se:

O MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO EM ESPANHA
O GENERAL FRANCO INTIMA MARTINEZ BARRIO A ENTREGAR O PODER
AS PRIMEIRAS TROPAS REVOLTOSAS DESEMBARCARAM ESTA MANHÃ EM CÁDIZ

Não havia dúvidas. Tinha viajado no tempo até 1936. A guerra civil espanhola estava em marcha. A seguir viria a segunda guerra mundial. Os próximos nove anos seriam sangrentos. Pela primeira vez fui assaltado por uma terrível ideia: E se não voltasse à minha época? Uma voz celestial cortou-me o pensamento. Junto ao cais, num quiosque de vinhos, alguém cantava. Aproximei-me. Além dos vinhos, havia bordados, fruta e souvenirs. Atrás do balcão, uma jovem adolescente de olhar luminoso cantava de forma luminosa. Calou-se para me atender.
- Diga senhor.
O seu sorriso era tão luminoso como o seu olhar, aliás toda ela irradiava luz.
- Na verdade, não quero nada. Só queria continuar a ouvir a sua bela voz.
- Obrigado. Adoro cantar.
Outra jovem, um pouco mais nova, aproximou-se.
- Esta minha irmã está sempre a cantar. Eu também gosto, mas ela é demais.
- A menina já pensou numa carreira de cantora.
O sorriso dela acendeu-se com mais intensidade.
- Adorava ser artista. Já participei como solista na marcha de Alcântara. Foi no ano passado. Não viu?
- Não estava cá.
Comecei a perceber o que se passava ali. Uma estrela estava para nascer. Formulei uma pergunta que só me iria confirmar o que já sabia.
- Posso saber o seu nome?
- Sou Amália e esta é a minha irmã Celeste.
- Amália?
- Sim, Amália Rodrigues – disse ela sorrindo e iluminando todo o Cais da Rocha do Conde de Óbidos.
De repente, a sua imagem começou a ficar turva. Tudo à minha volta começou a redopiar. Senti-me desmaiar. Fiz um esforço hercúleo para abrir os olhos. Quando finalmente consegui, estava de novo deitado na cama do quarto dos relógios. À minha frente estava a rececionista da Pensão Cronos com ar preocupado.
- Desculpe entrar no seu quarto, mas ouvi-o gritar. Sente-se bem?
- Sim, agora sim. Tive um sonho estranho...
- Devia ser um pesadelo. Não quer um cházinho? Temos um pequeno bar.
- Aceito sim.
Segui atrás dela por um extenso corredor. Olhei de relance para um quadro, mas tive que voltar a olhar. Não era nenhuma pintura. Era a capa do Diário de Lisboa 19 de Julho de 1936. No local do preço estava uma moeda de um Euro. A rapariga voltou atrás para me esclarecer na medida do possível.
- Isso era do meu avô falecido. Ele dizia que era uma recordação dos seus tempos de meninice em que era obrigado a trabalhar como ardina. O que me intriga é a moeda. Sempre há cada mistério.
- Pois há... Já agora, sabia que Cronos era o Deus do tempo na antiga Grécia?

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